Uma experiência cinematográfica intensa e provocadora
O premiado filme Sirāt, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, não é para os fracos de coração. O que começa como uma viagem aparentemente tranquila entre pai e filho pelo Marrocos rapidamente se transforma em uma experiência radical, que desafia convenções de gênero, limites éticos e até o bom gosto. Dirigido pelo cineasta francês Óliver Laxe, que assina o roteiro ao lado de Santiago Fillol, o longa rompe as expectativas com ousadia e um impacto visual marcante.
Sinopse: muito além de uma simples busca
A história acompanha Luis (Sergi López), um homem de quase 60 anos, e seu filho de 12 anos, Esteban (Bruno Núñez), em busca da filha desaparecida de Luis. Acreditando que ela esteja em um rave em algum ponto remoto do deserto marroquino, os dois partem em uma jornada que mistura road movie, transe coletivo e imersão existencial.
Durante o percurso, pai e filho juntam-se a um grupo de forasteiros tatuados e visivelmente alterados, que viajam em caminhões 4×4 rumo a uma festa longe das normas da civilização. Atravessam estradas bloqueadas pelo exército, enfrentam perigos naturais e imprevistos surreais – como o adoecimento do cachorro da família após ingerir fezes humanas contaminadas com drogas.
Estética sensorial e rupturas narrativas
A experiência visual do filme é amplificada pela escolha de filmagem em 16 mm, sob a direção de fotografia de Mauro Herce, criando um cenário vibrante e quase alucinatório. A trilha sonora pulsante, com batidas techno assinadas por Kangding Ray, ecoa pelas rochas do deserto, contribuindo para a imersão completa do espectador.
Apesar da narrativa inicial sugerir um clássico filme de estrada, Laxe subverte a estrutura e leva o público a uma espiral simbólica. A obra abandona gradualmente o roteiro tradicional para mergulhar no abstrato, tornando-se uma viagem interior tanto quanto física.
Tradição versus contracultura
No cerne da trama, dois modelos familiares colidem: a família tradicional, desestruturada pela ausência e pela dor, confronta uma nova comunidade libertária, onde reinam o hedonismo, a fluidez relacional e a rejeição às normas sociais. Os ravers, tomados por drogas e música, funcionam como uma nova tribo, quase mística, que busca êxtase como forma de transcendência.
Um título cheio de simbolismo
O nome Sirāt vem do árabe e tem forte carga espiritual no Islã: representa a ponte que todos devem atravessar após a morte para alcançar o paraíso. Essa ponte é descrita como “tão fina quanto um fio de cabelo e tão afiada quanto uma lâmina”, com o inferno sob ela. Quem consegue cruzá-la chega à salvação; quem não consegue, cai na perdição.
Esse simbolismo está presente em cada cena do filme: a jornada dos personagens oscila entre o êxtase coletivo, o medo existencial e a promessa de libertação, como se o próprio filme fosse essa ponte tênue e perigosa.
Um cinema que desafia e desperta
Sirāt é um filme que não deixa espaço para indiferença. Ele exige entrega sensorial, provoca reflexões e não busca agradar ao mainstream. É um cinema autoral, intenso, e que desafia os padrões com coragem.
Embora não seja perfeito, trata-se de uma obra visceral e poderosa, que explora o limite entre loucura, arte e transcendência. Em uma era de produções cada vez mais previsíveis, Sirāt surge como um lembrete do que o cinema pode ser quando não tem medo de incomodar – e de revelar o que há além da superfície.